intervisao - Vila Viçosa

terça-feira, novembro 07, 2006




A China ou o incómodo recém-chegado I

Simon Kuznets, economista norte-americano laureado com o Prémio Nobel, estimou que a dimensão (isto é, o volume da produção) da economia norte-americana nos dois séculos pós-independência, isto é, entre 1776 e 1976, teria aumentado cerca de 1000 vezes, o que à primeira vista surge como extraordinária mudança de escala. E, sem dúvida foi um crescimento mais rápido do que o pioneiro trajecto da economia britânica, depois da chamada Revolução Industrial.

Mas o crescimento médio anual da economia chinesa nos últimos vinte e cinco anos tem sido cerca de três vezes mais rápido, o que equivale a atingir uma mudança de escala equivalente em aproximadamente setenta anos, e isto num sistema económico bem mais complexo e potente. Mesmo nos últimos três anos (2002-2005), a produção chinesa cresceu a cerca de dez por cento ao ano, o que equivale a duplicar a escala em cada sete anos.

Na verdade, hoje pode dizer-se que alguns (mas não todos!) dos países «atrasados» no desenvolvimento económico crescem mais depressa e estão sobretudo localizados, já não no Ocidente, mas no Oriente do planeta. E nesta área, merece destaque a Ásia do Pacífico onde a China é o grande actor a analisar. Esta é hoje a quarta economia mundial, calculando os valores das produções nacionais em dólares às taxas de câmbio correntes, e a segunda fazendo a conversão das moedas nacionais em paridades de poder de compra.

No passado recente, a trajectória que conduziu alguns países europeus, na terceira década do século passado, a algo que mereceu a designação de social-democracia, foi interrompida por uma conjuntura histórica complexa dominada pelo movimento de globalização.

Hoje, é indispensável encontrar novos modelos de «coesão social» ou de integração social para que o processo de globalização não implique considerável retrocesso naquilo que constitui, ou constituiu, a melhor herança social, económica e também cultural da «modernidade» europeia e ocidental. Modelos que estão, com efeito, a ser procurados na prática, com maior ou menor sucesso, e por vias diferentes na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França ou nos países escandinavos.

Mas sem dúvida que a emergência mundial de economias de grandes dimensões, de abundantes recursos humanos, já apreciavelmente qualificados em áreas hoje estratégicas, em particular no domínio das novas tecnologias da comunicação e informação, constitui grande ameaça à apontada renovação do «modelo europeu» de coesão social.

E, no imediato, é a ascendente economia chinesa que claramente identifica essa ameaça, em particular depois do seu acesso formal à Organização Mundial do Comércio (OMC), facto que corresponde de algum modo ao reconhecimento dum estatuto de bom comportamento pelas potências ainda dominantes na economia mundial.
A «Nova economia do trabalho»
O efeito da China na «Nova economia do trabalho» manifesta-se em diferentes aspectos:

1) No acesso de exportações chinesas aos mercados mais desenvolvidos, substituindo produção local sobretudo de alta intensidade de mão-de-obra. Como é evidente, este efeito poderá ter mais dramáticas consequências nos países ocidentais com sistemas produtivos ainda largamente baseados em mão-de-obra barata e pouco qualificada, como Portugal;

2) No acesso de exportações ocidentais, relativamente intensivas em novas tecnologias e conhecimentos, ao amplo mercado interno chinês, em rápida expansão. São cerca de 1300 milhões de pessoas ainda de baixo nível médio de vida cujo consumo não tem crescido ao ritmo da produção nacional, facto que tem permitido grande acumulação de poupança. Mais tarde ou mais cedo, porém, alguma correcção nesta situação será inevitável, até pela intensificação de tensões sociais. Tal facto, como se compreende, originará grande «puxão» na procura interna e externa;

3) No deslocamento, no todo ou em parte das cadeias produtivas, de indústrias e serviços para a órbita da economia chinesa. A doutrina de Deng, o grande «timoneiro» que sucedeu a Mao, simbolizada pela conjugação de dois slogans expressivos, «Porta Aberta» e «Um país, dois sistemas», conduziu a uma economia cada vez mais aberta à entrada de capital estrangeiro, num sistema económico crescentemente identificado com a lógica do mercado global.

Nos primeiros anos da aplicação da estratégia, eram exigidos pelas autoridades chinesas acordos de joint ventures, entre empresas e grupos estrangeiros e nacionais, com a intenção de assegurar uma apropriada transferência de conhecimentos e tecnologias. E o capital estrangeiro deveria localizar-se em certas «Zonas Económicas Especiais», geralmente no litoral sul do país, e também nas vizinhanças de Hong Kong e Macau.

Mas, com o desenrolar do processo, foi gradualmente alargada a «Porta Aberta» de Deng e diminuída a importância relativa de Hong Kong nessa abertura, cujo papel na economia chinesa todavia continua fundamental, sobretudo como centro monetário e financeiro;

4) No crescente fluxo de investimento directo chinês e de recursos humanos chineses para economias de outras áreas geográficas extra-asiáticas, como a África e a América Latina, e também a própria Europa Ocidental.

A globalização da economia chinesa, com efeito, será cada vez mais, uma projecção sobre o exterior e não apenas, como foi de início, uma crescente projecção do exterior sobre uma economia que tinha vivido praticamente à margem da envolvente externa.

Alguns exemplos são notórios em áreas do nosso conhecimento directo.

A presença chinesa, em investimento e em recursos humanos, tem aumentado de forma espectacular, em países africanos como Angola, Moçambique e até Cabo Verde. E uma digressão por diversas regiões da província portuguesa, do norte ao sul do país, mostra-nos a presença directa ou indirecta de produtos e comerciantes chineses em grande parte do território nacional. Em lojas onde o turista estrangeiro encontraria, alguns anos atrás, sobretudo artigos do artesanato português, encontra hoje mais facilmente artigos artesanais chineses;

5) Na utilização de uma parte da poupança interna chinesa no financiamento do défice corrente da balança de pagamentos norte-americana, através da aquisição de obrigações do tesouro norte-americano e assim contribuindo para a situação paradoxal de ser uma economia de baixo nível médio de vida a financiar o consumo de outra, e de longe, mais rica.

A elevada taxa de poupança registada na economia chinesa, em parte, resulta da inexistência dum sistema nacional de segurança social que proteja de forma satisfatória os trabalhadores perante os riscos de doença, invalidez, desemprego e na velhice. Está-se muito longe, na verdade, do modelo europeu da democracia política e social que, apesar de todas as vicissitudes se mantém intacto, no essencial. Porém, é provável que num futuro próximo o Estado chinês seja forçado a avançar significativamente em termos de segurança social.
O «efeito China» na economia mundial é assim considerável e não parece provável a sua redução em futuro próximo. E outras economias emergentes de grande dimensão, como a Índia, podem ter efeitos semelhantes na problemática do trabalho e do emprego.
Continua na Parte II